Nova Batida 2019: gentrificar a cada beat




Em 1965, Benoit Mandelbrot, pai da geometria fratal, escreveu o paper “How Long Is The Coast Of Britain? Statistical Self-Similarity and Fractional Dimension”. Nele, o matemático utiliza a costa da Grã-Bretanha como exemplo para tentar decifrar a geometria que existe na natureza e se afasta dos sólidos perfeitos que Euclides concebeu há cerca de 25 séculos atrás. Devido à sua irregularidade, o tamanho da costa britânica varia consoante a escala utilizada, podendo-se então afirmar que, se a unidade de medida for suficientemente pequena, ao ponto de medir até mesmo o perímetro das mais pequenas pedras que constituem este largo terreno, a resposta a esta pergunta é tão grande que é considerada infinita.

Qual é a relação entre esta teoria e o Nova Batida? É que a costa britânica é bem maior que o que achamos, se a relativizarmos o suficiente. Neste caso em particular, o festival demonstra que Lisboa se está a tornar a passos largos também ela uma zona abrangida por esta costa, onde ouvir português é raro e falá-lo é praticamente inútil. O festival, organizado pela produtora britânica Soundcrash, voltou a ter os seus palcos espalhados entre a Lx Factory e o Village Underground, na zona de Alcântara, também estes locais que espelham a crise turística que a capital portuguesa está a atravessar, sem se prever qualquer melhoria nos próximos tempos. Voltou também a publicitar precariamente o festival em Portugal, a colocar a tabela de preços dos bilhetes em libras (inclusive para residentes de países pertencentes à zona euro), a não ter funcionários nas bilheteiras que soubessem falar português, e, como se não fosse já óbvio o desinteresse que a organização deste festival tem pela adesão de quem vive neste país, escolhem meter o cabeça do cartaz do festival a tocar entre a meia noite e as duas da manhã de um domingo.

O primeiro dia, 13 de setembro,  marcou desde cedo o ritmo do festival. As atividades mais calmas e relaxantes como o yoga começaram relativamente cedo, acelerando depois o passo com a chegada dos concertos, que se transformava, à medida que o sol se punha, num espaço de raves como poucos existem em Portugal. Quem tratou de inaugurar a pista de dança (demasiado cedo para se aguentar o resto do dia todo no venue) foi Onra com o seu hip hop, que foi sucedido por Kokoko, banda constituída por membros de diferentes tribos da República Democrática do Congo, que vieram apresentar o seu mais recente álbum Fongola. Apesar do pavilhão da Lx Factory ainda se encontrar com pouco público (mais de dois terços do espaço ainda se encontrava vazio), os 5 artistas não se inibiram e criaram uma enorme explosão de energia que impedia qualquer corpo de estar parado. Sempre muito interativos, apesar da dificuldade que é comunicar em francês para um público predominantemente britânico, a festa nunca parou até ao fim do concerto, por mais trocas de instrumentos e de vocalista que tenham existido ao longo de toda a performance. Seguiu-se Nubya Garcia, que, ainda com um público pequeno, deliciou os ouvidos de quem estava presente com as suas composições (algumas delas unreleased) que flutuam pelo Jazz e com os seus variados elogios à cidade Lisboeta, desabafando ainda estar a ponderar mudar-se para lá.

Ross From Friends transformou a venue num dancefloor mais assumido, com o beat a ficar progressivamente mais pesado, ainda numa mistura entre o som eletrónico do Ableton Live e o analógico de um saxofone, baixo e teclado.  Floating Points, um dos cabeças de cartaz, começou surpreendentemente com pouca gente no público, talvez por ser hora de jantar, mas não tardou a encher (e o calor a apertar), ficando a sala repleta de pessoas ainda antes do primeiro kick pesado nos cair em cima. A noite foi-se mantendo através do Dj Seinfeld, que atou também numa festa num barco organizada pelo festival, até chegar ao momento mais desejado da noite, Jon Hopkins. O músico fez um set que impressionou tanto os fãs das raves como os da sua música mais melódica, sempre com os graves em força e com ligeiras passagens pelo álbum que lançou o ano passado, Singularity, que deixavam o público louco e ainda mais energético que o que já estavam. Para fechar a noite, o público dividiu-se entre as frequências de Dj Marfox e John Talabot.

Nova Batida 2019: primeiro dia

No segundo dia, 14 de setembro, evidenciaram-se os concertos de Jordan Rakei, que foram extremamente acarinhados pelo pequeno público que conseguiu chegar à LX Factory ainda cedo, e Talib Kweli, que deixou o público maravilhado com todo o seu currículo artístico que vai desde músicas com Wu Tang Clan, J Dilla, Madlib e Mos Def a Kanye West, Anderson Paak e Waka Flocka Flame. O rapper de Brooklyn aproveitou o seu tempo de antena para nos dar uma lição da história do Hip Hop, com momentos com músicas Bob Marley, Sister Nancy e Nina Simone, vídeos de street art e ainda do movimento americano dos direitos civis dos anos 60 enquanto tocava Get By, a música com mais sucesso no seu projeto a solo. Se podemos afirmar que o festival se tornou político nalgum ponto destes 3 dias, podemos dizer que a responsabilidade disso é Talib.

Com a sala já aquecida para receberem os Friendly Fires, o público foi recebido não pela banda americana, mas por uma informação que afirmava que a banda não iria tocar por motivos técnicos, deixando muita gente extremamente desagrada pela inexistência de um aviso prévio, incluindo nós. Calhou a Jungle tentar compensar com o seu dj set que rapidamente voltou a deixar as pessoas a dançar. Não nos deixou a nós que, já saturados do ambiente que nos fazia sentir viver numa cidade que é uma espécie parque de diversões internacional, sentimos a necessidade de acabar a noite longe por ali.

Nova Batida 2019: segundo dia

Chegados ao último dia, 15 de setembro, já com as pernas cansadas e estômagos sensíveis das últimas duas noites, testemunhamos esse cansaço no público através da pouca adesão que Akala teve no seu concerto. Enquanto passeávamos entre venues, foi-nos informado através de um papel afixado que Octavian, um dos artistas mais esperados do dia, iria também cancelar o seu concerto por motivos de saúde, aumentando assim para três a lista de cabeças de cartaz a darem tampa ao festival (Slowthai tinha sido confirmado, mas não conseguiu vir também). Ibibio Sound Machine encheram o palco com cores tanto a nível visual como sonoro, mas quem voltou a dar vida à Lx Factory foi Ben UFO, que tinha uma multidão a aguardá-lo e inaugurou o dancefloor de bass music, recuperando das cinzas o ambiente no pavilhão, que parecia predestinado a desiludir com tantos cancelamentos. Quem não desiludiu também foi Four Tet, talvez o momento mais esperado de todo o festival. O músico consagrado foi uma autêntica máquina de dinamismo que deixou o público sempre sem saber o que iria acontecer, principalmente depois de passar uma música de Ne-Yo que deixou todas as vozes a cantar a letra em uníssono.

Nova Batida 2019: terceiro dia

Esta edição do Festival Nova Batida foi marcada pela sua dialética, que num espaço de um fim de semana nos fez sentir e observar momentos muito bons e momentos muito maus. Concertos que nos levaram ao céu, um ambiente desconfortável onde se viram alguns confrontos físicos e assédios, pessoas a lavar as mãos antes de ir mijar e outras a vomitar logo às 20h, um festival que de português só tem o nome a localização, se calhar para criar uma ilusão exótica que no fundo não existiu devido a homogeneidade do público. Estes três dias representaram o que Lisboa se está a tornar: bons momentos nesta cidade, que poderiam contribuir para o enriquecimento da cultura e do estilo de vida deste país (bem sabemos a necessidade que há de nesta cidade haver uma boa rave num bom barracão com espaço e um sistema de som que respeita a música), mas acabam a ser quase exclusivamente internacionais, sendo só mais um peso em cima das costas de Lisboa, que já há muito tempo carrega a gentrificação e tenta ao máximo que as suas pernas não percam as forças que lhes restam e cair na cultura despersonalizada das capitais europeias.


Texto: Francisco Couto
Fotos: Iris Cabaça
Nova Batida 2019: gentrificar a cada beat Nova Batida 2019: gentrificar a cada beat Reviewed by Watch and Listen on setembro 21, 2019 Rating: 5

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